[GUFSC] software livre em criptografia: razões histó ricas

Ricardo Grützmacher grutz@terra.com.br
Wed, 12 Jun 2002 16:33:44 +0000


Uma reportagem bastante interessante nas páginas do portal comciência.br

Cópia integral de: 
http://www.comciencia.br/reportagens/guerra/frames/guerra22.htm



O uso de software livre em criptografia: razões históricas


Ricardo Ungaretti


Existem inúmeras razões para se usar software livre. E também para não 
utilizá-lo, retrucariam alguns. Argumentos é que não faltam para 
sustentar ambas as posições. Deixando de lado a passionalidade que este 
debate pode suscitar, existem, em certas áreas de aplicação, razões 
práticas e objetivas para a adoção do software livre. Uma destas áreas é 
a criptografia.

Em tempos de Internet, home-banking e comércio eletrônico, pode-se falar 
em criptografia sem correr o risco de ser tratado como um alienígena. 
Até mesmo o mais leigo dos usuários só sente segurança para enviar seus 
dados pessoais pela grande rede quando vê o clássico ícone do cadeado 
fechando-se. Mesmo que não compreende os complexos mecanismos 
matemáticos que se estabelecem naquele instante ele sabe que a 
criptografia, principal ferramenta para prover segurança à informação no 
ciberespaço, está presente para protegê-lo.

Mas não é desta abordagem da criptografia, de uso individual ou voltada 
para aplicações comerciais, que se tratará aqui, e sim daquela adotada 
pelos governos. É a criptografia na sua formulação mais clássica, 
voltada basicamente para garantir o sigilo das informações. Seu emprego, 
desde os primórdios da civilização, restringiu-se aos ambientes militar 
e diplomático, sendo, assim, tratada como arma de guerra. Isto porque 
ela permite proteger aquilo que há de mais importante para um governante 
quando, em situações de crise, tem que tomar decisões: a informação 
sigilosa. À criptografia contrapõe-se a criptoanálise, voltada para a 
obtenção da informação original a partir de sua forma cifrada, ou seja, 
para a quebra dos algoritmos criptográficos, sendo fundamental para as 
áreas de inteligência de um país. Ao estudo conjunto de criptografia e 
criptoanálise, dá-se o nome de criptologia.

Basta que se debruce nos compêndios da História para perceber a 
importância da criptografia e da criptoanálise. A seguir, será visto 
como elas conseguiram influenciar os destinos de povos e nações e como 
os governantes, principalmente de países desenvolvidos, as controlam e 
utilizam para alcançarem seus objetivos.

A influência da criptologia ao longo da História
Desde os tempos do imperador romano Júlio César, os governantes percebem 
as vantagens fornecidas pela criptologia. Se com uma criptografia forte 
conseguem manter protegidas suas informações sensíveis, com a 
criptoanálise buscam as informações de seus adversários.

Remonta ao século XVIII, na Europa, o surgimento das chamadas Câmaras 
Negras, para onde eram desviadas as correspondências de interesse dos 
governos para serem copiadas antes de seguir seus destinos. Nessas 
câmaras, grupos de criptoanalistas formados por matemáticos e lingüistas 
tratavam de desvendar os segredos das mensagens que haviam sido 
capturadas na forma cifrada. Já àquela época, os governos ocupavam-se em 
construir sistemas criptográficos seguros, ao mesmo tempo em que se 
capacitavam na arte de quebrar os códigos de seus adversários.

É na Primeira Guerra Mundial, porém, que se manifesta, de forma clara e 
evidente, a influência da criptologia nos destinos dos povos. Era início 
de 1917 e os ingleses, saturados por uma guerra que se arrastava, 
ansiavam pela adesão dos Estados Unidos. Os alemães, também desgastados, 
pretendiam iniciar uma guerra submarina irrestrita, a fim de cortar os 
suprimentos para os ingleses. Sabendo que esta atitude fatalmente iria 
encerrar a neutralidade americana, o Ministro do Exterior Alemão, Arthur 
Zimmermann, envia um telegrama endereçado ao presidente do México, 
propondo uma aliança militar contra os Estados Unidos. O telegrama foi 
interceptado pelos ingleses, que o decifraram e passaram aos americanos. 
Atônitos com a ousadia dos alemães, os americanos entram na guerra. O 
célebre telegrama decifrado ficou conhecido como o telegrama de Zimmermann.

Durante a Segunda Guerra Mundial, novamente a criptografia e a 
criptoanálise desempenharam papel decisivo no desenrolar dos confrontos. 
Surpreendidos inicialmente pelo ataque a Pearl Harbor, os americanos não 
foram capazes de prever a audaciosa operação conduzida pelos japoneses, 
apesar de terem interceptado e decifrado mensagens diplomáticas daquele 
governo indicando um possível ataque. Contudo, a situação foi revertida 
pelos americanos ao longo do conflito. Além de quebrarem as cifras 
japonesas "Red" e "Purple", conseguiram manter sua principal cifra, a 
"Sigaba", intacta. Mas é do velho continente que vem o maior exemplo de 
sucesso nesta área. Além de utilizarem sua cifra "Typex" com êxito, os 
ingleses protagonizaram uma das maiores operações de quebra de cifra de 
que se tem notícia. Herdando informações iniciais dos poloneses e 
contando com a genialidade de pessoas como Alan Turing, foram capazes de 
decifrar a máquina alemã "Enigma". A guerra se transformava em um jogo 
de cartas marcadas, com os ingleses podendo prever grande parte das 
jogadas dos alemães. Uma aliança entre americanos e ingleses, para a 
troca de informações oriundas de suas operações de criptoanálise 
permitiu, segundo historiadores, que a guerra fosse abreviada em dois a 
três anos. Interessante ressaltar que a quebra da Enigma pelos ingleses 
foi tornada pública somente na década de 1970. Até então, várias nações, 
principalmente ex-colônias britânicas, utilizaram a Enigma para a 
proteção de suas informações. Alguém mais podia ler os segredos dessas 
nações.

Impressionados com a desenvoltura dos ingleses nas duas guerras e 
traumatizados com o que ocorrera em Pearl Harbor, os americanos criam em 
1952 a sua Agência de Segurança Nacional (NSA, sigla em inglês), a fim 
de centralizar e liderar todos os esforços governamentais em 
criptologia. A agência se transformaria no maior concentrador de 
matemáticos e lingüistas, o centro com a maior capacidade computacional 
do planeta, com a maior quantidade de supercomputadores em um mesmo lugar.

No início da década de 1970, a NSA já despontava como o grande órgão de 
inteligência do mundo. Além de sua atuação na área de criptologia, a 
agência tornara-se os ouvidos da América, voltando-se para a 
interceptação e o monitoramento das comunicações em nível global, 
desenvolvendo um sistema capaz de interceptar comunicações por 
intermédio de satélites espiões e de bases terrenas direcionadas aos 
satélites comerciais internacionais, entre outras técnicas. Havia porém 
uma ameaça a toda essa parafernália tecnológica: a criptografia. Se as 
comunicações interceptadas estivessem cifradas e com uma criptografia de 
qualidade, o sistema americano não conseguiria alcançar seus objetivos.

Em paralelo, o extraordinário avanço das telecomunicações e da 
informática abria novos horizontes para diversos setores da economia. 
Redes de computadores eram criadas para atender aos setores bancário e 
financeiro, demandando por uma solução que atendesse aos problemas de 
segurança da informação que surgiam com as novas tecnologias. A 
criptografia emerge como solução para o problema. Estudos e pesquisas 
nesta área proliferam-se pelos grandes centros universitários. A arte e 
a ciência, antes confinadas aos mais restritos setores governamentais, 
ameaçavam tornar-se públicas. Em resposta à ameaça da disseminação do 
conhecimento em uma área considerada estratégica, o governo americano 
impõe grandes restrições a qualquer tipo de exportação dessa tecnologia 
por sua indústria, ao mesmo tempo em que pressiona os demais países 
desenvolvidos, com capacidade nessa área, a adotarem medidas 
semelhantes, pela adesão a tratados internacionais altamente restritivos.

É sob este clima que os Estados Unidos resolvem adotar um algoritmo 
criptográfico para ser utilizado como padrão comercial, um sistema que 
pudesse prover um alto nível de segurança às emergentes necessidades de 
sistemas de telecomunicações e informática. Era criado o DES (Data 
Encryption Standard). Inicialmente um algoritmo criado por pesquisadores 
da IBM, para que pudesse ser aprovado pelo NBS (National Bureau of 
Standards), o DES teve que passar pelo crivo da NSA, onde ele teria sido 
"fortalecido". Isso mesmo, a NSA teria colocado toda a sua experiência 
no fortalecimento de um algoritmo criptográfico que seria adotado como 
padrão internacional de criptografia, um algoritmo que, utilizado em 
escala mundial, fatalmente dificultaria, se não impedisse, a obtenção de 
informações capturadas pelos sistemas de monitoramento de comunicações 
conduzidos pela agência. É o que se conta!

Mas a pressão da sociedade falou mais alto. O estudo da criptografia 
disseminou-se de tal forma que, ainda na década de 1970, foi inventada 
uma de suas mais notáveis técnicas, a criptografia de chave pública, 
verdadeira mudança de paradigma nesta área. A criptografia atingia a 
fase dos códigos inquebráveis. Apesar de fortes pressões governamentais, 
esta tecnologia conseguiu atingir o cidadão comum quando, já nos idos de 
1990, Phil Zimmermann criou e disseminou pela Internet o PGP, programa 
que popularizou a criptografia.

Não obstante os interesses das empresas americanas, desejosas de 
venderem produtos com alto nível de segurança criptográfica, o governo 
dos Estados Unidos, por meio de uma emaranhada legislação, conseguia 
impedir a exportação desses produtos. Um aplicativo, contendo 
criptografia, só podia ser vendido fora do território americano se o 
tamanho da chave criptográfica, que em última análise determina o poder 
da criptografia, se limitasse a 40 e, posteriormente, a 56 bits, limites 
estes que os especialistas consideravam ser quebráveis pela NSA. Além 
disso, muitos pesquisadores americanos comentavam a existência de 
supostos agentes da NSA que prometiam tratamento diferenciado às 
empresas que se sujeitassem a implementação de backdoors em seus 
programas, de maneira a propiciar um atalho para os trabalhos de 
criptoanálise da agência americana. Essas empresas teriam a permissão 
para a exportação de seus produtos facilitada.

A criptografia na atualidade

Assim, chega-se aos dias de hoje. Apesar de certa flexibilização na 
legislação americana de exportação de criptografia, o governo ainda 
detém o controle final. Não existe a possibilidade de uma empresa 
americana exportar um produto, que incorpore criptografia, sem que haja 
o aval do seu governo. Nem mesmo a substituição da criptografia original 
de um programa por sistemas criptográficos desenvolvidos pelo usuário é 
permitida. Em última análise, os setores de inteligência dos Estados 
Unidos têm acesso aos algoritmos criptográficos de qualquer produto 
oriundo de empresa americana.

Tem-se, então, a derradeira constatação. Criptografia de padrão 
governamental não se compra, se desenvolve. A História mostra que não 
existe a menor possibilidade de um governo permitir a venda a outros 
países de um sistema criptográfico que ele não possa quebrar. Levando 
este pensamento às últimas conseqüências, teria-se que desenvolver todos 
os componentes para uma aplicação, desde o sistema operacional até os 
programas aplicativos específicos. Esta proposta, no entanto, é inviável 
econômica e tecnicamente, principalmente para os países em desenvolvimento.

A solução para esse problema está na utilização de software livre. Um 
sistema implementado sob esta filosofia, não necessariamente gratuito, 
disponibiliza o seu código-fonte aos usuários, permitindo a verificação 
da sua segurança e a promoção de alterações específicas nos algoritmos 
criptográficos, caso não haja confiança na criptografia utilizada 
originalmente pelo sistema.

Em suma, nenhum sistema, principalmente aqueles voltados para a 
segurança da informação, pode ser considerado seguro, se não se puder 
auditá-lo. O acesso ao código-fonte é imprescindível para permitir uma 
correta avaliação dos sistemas disponíveis e, caso se julgue necessário, 
a conseqüente promoção das alterações cabíveis para se alcançar o nível 
de segurança criptográfica desejado.

Ricardo Ungaretti é assessor do Projeto de Segurança da Informação e 
Criptologia do Centro de Análises de Sistemas Navais da Marinha